terça-feira, 29 de julho de 2008

O lado secreto do Códice

O jovem consultor bancário Edward Wozny prepara-se para umas merecidas férias. Antes, porém, deve realizar um último trabalho: a organização e catalogação de uma valiosa biblioteca particular, cujos proprietários revelam especial interesse na recuperação de um misterioso códice do século XIII. A tarefa revela-se cada vez mais difícil, até porque, quase sem saber como, Edward vê as suas atenções repartirem-se entre a busca do códice e um viciante jogo de computador que nada tem a ver com a história. Ou então...
O Códice Secreto, de Lev Grossman (um crítico literário que publicou o seu primeiro romance em 1997), é um dos livros mais empolgantes que li nos últimos tempos. Não apenas (e talvez nem principalmente) pelo ritmo de thriller que o autor imprime à narrativa, mas pela incursão nos meandros inesperados da pesquisa histórica, pelo mergulho na perseguição incógnita de fontes dispersas e pelo envolvimento na misteriosa decifração de processos de ocultação de documentos e símbolos tão característicos da Idade Média. Tudo isso é aqui recriado com surpreendente rigor e com um interesse narrativo acima da média.
Podia brotar apenas daí o meu entusiasmo perante O Códice Secreto: porque a acção se desenrola no universo da pesquisa histórica. Mas há mais, bastante mais: é que, curiosamente, essa mesma acção divide-se – tal como o protagonista e tal como nós hoje – entre a História (o silêncio da biblioteca que conserva e esconde os sólidos testemunhos do passado) e a tecnologia (a vertigem da informática que faz circular e também esconder a comunicação virtual do presente). Edward Wozny move-se neste percurso a duas velocidades, buscando um equilíbrio de controlo da informação que lhe permita resolver o mistério e buscando também um equilíbrio de raciocínio e emoções que lhe permita definir-se a si próprio.
O Códice Secreto é, pois, um livro que fala de História, de livros antigos, de bibliotecas e do passado; e que fala também de computadores, de jogos e informação em rede e do presente. Mas, nas entrelinhas, fala das pessoas. Esse talvez seja o lado secreto deste códice. O mais empolgante.

Paulo Vaz

Título do livro: O Códice Secreto
Autor: Lev Grossman
Editora: Editorial Presença (1ª ed. 2005)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

D. Afonso Henriques visto por José Mattoso

José Mattoso é, sem dúvida, um dos protagonistas da mais sólida, consistente e rigorosa historiografia portuguesa de sempre. A sua vasta obra, inscrita no âmbito de uma História verdadeiramente «nova», centrada nos grupos humanos e no seu quotidiano, tem-nos mostrado, de muitas maneiras, os modos como as massas anónimas suportaram as conjunturas económicas e as vicissitudes políticas dos tempos em que viveram, os tempos de uma Idade Média emoldurada num quadro social pintado com a paleta de uma matriz cultural que ele também nos tem mostrado com inigualável mestria.
Ao dizer isto, pode parecer que o seu D. Afonso Henriques (primeiro volume do projecto de biografias dos reis de Portugal que está a ser publicada pela Editora Temas e Debates) vem contrariar a visão da História que ele sempre nos propôs. Mas não.
D. Afonso Henriques não é, de modo nenhum, um regresso a um qualquer tipo de história individual ou patriótica. É a biografia de um homem que foi rei de Portugal em circunstâncias próprias e irrepetíveis. É uma narrativa histórica – e muito pouco romanceada – da vida de um homem igual aos outros em muitas coisas, mas que, por efeito do seu temperamento e do contexto em que a sua existência se desenrolou, se viu projectado para a liderança régia de outros homens que, movidos por inspiração e interesses, viriam a fazer dele um mito maior.
E José Mattoso dá-nos tudo isso (o homem, o rei e o mito) em fatias separadas com o necessário rigor histórico mas articuladas com a conveniente solicitude narrativa. D. Afonso Henriques é a história de um homem entre os homens (e mulheres) do seu tempo, todos eles descritos como personagens bem definidas de um atractivo romance. Mas é também, e acima de tudo, o retrato de um período singular da história peninsular que, por várias razões, se revelou estruturante para a evolução de Portugal como país e para a mentalidade dos portugueses como povo.
E é na lucidez desse retrato que reside o maior trunfo desta obra, já que José Mattoso (fugindo sabiamente às «estórias» e pseudo-lendas que envolvem a vida do Fundador) mostra-nos que Afonso Henriques, D. Teresa. Ermígio e Egas Moniz, Afonso Raimundes, Mafalda de Sabóia e todos os outros são homens e mulheres iguais a nós apenas na sua condição de seres humanos, e diferentes de nós apenas no tempo em que viveram e no quadro sócio-cultural e mental em que se moviam. Porque a História, verdadeiramente, é a ciência dos homens no tempo.
Vale a pena ler, por tudo isto. E, além de tudo isto, porque está muito bem escrito.

Paulo Vaz

Título do livro: D. Afonso Henriques
Autor: José Mattoso
Editora: Temas e Debates